segunda-feira, 17 de agosto de 2009



sonho #2

Sonhei que minha mãe tinha adotado um bebê. Ele usava óculos, era muito feio e qual não foi minha surpresa quando, ao fazer uma foto sua e olha-la no visor, descobri que a imagem que aparecia era sempre a de um velhinho, não a do bebê que eu podia ver com meus olhos.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

carta #5

Querida S,

Hoje abri o jornal como faço diariamente e, por coincidência, justo nas páginas internacionais repletas de desgraças desse mundo – pestes, guerra, inundações e vendavais -, não conseguia parar de rir. Não que eu torça pelo apocalipse mas foi por causa das fortes cócegas internas.

Tem uma flor nascendo dentro de mim!

A culpa é dos suspiros! E acontece de uma forma mais comum do quê o que se imagina: há uns dias atrás eu estava na janela, mirando o horizonte e pensando em coisas amarelas com listas azuis que sempre me provocam uma certa nostalgia quando, repentinamente, num momento de suspiro, um fiapo de baobá trazido pelo vento da longínqua África entrou pela narina esquerda e nos dias seguintes meu olfato se resumia a cheiro dos bichos que se esfregaram no tronco daquela árvore. Não importava onde eu estivesse, se no dentista ou no restaurante, e lá vinha aquele cheiro de leão indolente, de elefantes amorosos e rinocerontes com coceira crônica.

Anteontem eu lia em profunda concentração a obra-prima de Paulo Coelho, “O Esotérico Raskolnikoff”, quando lhe imaginei andando nos astros distraída usando um vestido leve e branco com estampas coloridas e suspirei profundamente. Nessa hora uma abelha desgarrada foi tragada para dentro do meu corpo e lá deu voltas como um turista até instalar-se na densa flora estomacal, muito bem podada e - obviamente - florida, um lugar certamente apropriado para um inseto. Acho que ela trazia pólen em suas patas pois no dia seguinte senti que algo crescia no meu interior e fazia cócegas nas costelas, no pulmão, resultando em ataques de risos inconvenientes, seja na leitura das tragédias do jornal, seja nas desgraças dos programas policiais na TV.

Minhas suposições se confirmaram quando acordei hoje e ao lavar o rosto na pia do banheiro, tomei um susto imenso e quase cai de costas: a planta tinha gerado uma flor que saiu por minha boca, decidida a conhecer o mundo. O pior é que ela não para de crescer!

Você conhece algum remédio para isso?

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

carta #4

Meu caro L,

Ontem apenas escrevi rapidamente para você pois quando ia contar as novidades fui comprar cigarros e como a barraquinha que fica em frente à minha casa estava fechada tive que andar uns quarteirões até depois do parque 13 de maio. Foi durante esse percurso que o Ministério do Controle Demográfico me pegou.

Não sei se você tem lido as notícias recentes sobre o escândalo no senado mas, resumindo, trata-se de uma conta secreta, não contabilizada publicamente, de modo a financiar gastos com o dinheiro público sem que ninguém saiba. E o Ministério está na lista desses financiamentos e só depois dessa descoberta esse obscuro departamento veio à tona. A função dele, de ação bastante questionável, é eliminar cidadãos para que a densidade demográfica do país estabilize. Eles fazem isso muito bem e discretamente: Tampas de bueiro são arrancadas, armadilhas postas em becos escuros, tubos de sucção montados em helicópteros ajudam a recolher os pedestres desavisados e, nas grandes capitais, sabe-se até de casos de sumiço de automóveis engolidos por alçapões instalados nas auto-estradas.

Pois bem, lá ia eu andando tranqüilo, assobiando “O passo do elefantinho”, inocente sem saber o que me esperava quando um círculo de asfalto cedeu, jogando-me num túnel escuro, em espiral aparentemente sem fim. Girei à minha revelia durante várias horas até ser expelido no fundo do mar. Não estava tão escuro graças a lua cheia que brilhava no céu e assim pude apreciar toda a beleza daquele estranho reino.

Eu não sabia onde estava, se no Pacífico ou Atlântico, então tinha que perguntar a alguém. Nesse momento vi uma lagosta que parecia muito simpática (além de deliciosa) e pergunte-lhe onde estávamos. As lagostas são seres polidos, cordiais, muito educados e antes de começar qualquer conversação fazem questão de cumprimentar seus interlocutores. O problema é que, sendo um ser primitivo, seu cérebro não consegue armazenar mais que dois segundos de memória e nossa conversa se resumia a um “tudo bem, prazer em conhecê-lo, meu nome é Batista, o lagosta e o seu?” antes mesmo que eu pudesse responder, ele já havia esquecido tudo e recomeçava o “tudo bem, prazer em conhecê-lo, meu nome é Batista, o lagosta e o seu?” Depois de várias vezes repetindo a mesma coisa, desisti e vi num enorme bacalhau que nadava elegantemente outra opção de ajuda. Logo me arrependeria... O bacalhau tinha um ar libidinoso e despudorado, fazia bico com os lábios, piscava os olhos revirando-os, o que me pareceu demasiadamente insinuante. Cheio de intimidades, me abordou com um “o que um fofinho como vofê está fafendo num lugar como êfe?” Recuei assustado com tamanha audácia e entreguei-me a minha sorte. Já estava conformado em morar no fundo do mar quando um submarino uqe trabalaha no resgate da caixa-preta do air-bus que caiu no litoral passou. Dei com a mão e eles gentilmente me deram carona. Só consegui voltar para casa hoje, moído, molhado e decepcionado com a lubricidade dos bacalhaus.

Para compensar, planejo hoje beber umas cervejas, comer uns petiscos (menos bolinho de bacalhau) e me dar um pequeno prazer merecido depois desse incidente. Vamos nessa?

grande abraço!
h

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

sonho #1

Sonhei que andava nu pelas ruas da cidade pois tinha um pênis tão perfeito que a nudez era tolerada em nome da estética. Roliço, simétrico em sua forma geral, cercado por veias que pareciam esculpidas por um renascentista me faziam sentir ter uma obra de arte entre as pernas.
Assombrados com tamanha beleza, um casal de amigos, vizinhos de prédio, trouxeram uma régua de altíssima precisão para dimensionar o fenômeno e o dimensionaram em exatos 30 centímetros! Em repouso, pois quando impávido e varonil, atingia os 50 centímetros. Embora orgulhoso, preferia não exibi-lo além do necessário.
Inspirado por tal dom, motivado pelo interesse da comunidade, logo inventei um concurso para eleger o pênis mais belo. Eu, lógico, era hors concours e tinha a árdua tarefa de presidir o júri. Havia duas categorias, a dos profissionais, que reuniam homens que trabalhavam ativamente no mercado do sexo e a de amadores, aberta a qualquer pênis diletante.
O evento acontecia num ringue vermelho e uma famosa atriz pornô se encarregava de medir e descrever os pênis concorrentes, enquanto um telão mostrava o objeto com detalhes para o público.
As torcidas organizadas iam ao delírio.
(O engraçado desse sonho é que não houve, em nenhum momento, um ambiente realmente erótico mas meramente estético, sem vínculos com a idéia de sexualidade ou virilidade)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

carta #3

Cara N,

Estava procurando uma frevo-canção para lhe enviar mas, você sabe como são os frevos-canções: tímidos e friorentos, se escondem nessa época de chuva e vento. Procurei por todas as frestas da casa, entre as plantas, atrás do armário do material de limpeza, embaixo da geladeira – que é quentinho e agradável –, até dentro das panelas pois uma vez me lembro de ter cozinhado um roquinho que dormia escondido na frigideira. Mas foi sem querer... (embora, confesso, estava delicioso e combinou bastante com os camarões ao curry)

Quando eu já quase desistia achei um pequeno rabo ainda em movimento e corri à estante em busca da “Enciclopédia Ilustrada da Anatomia Musical” e pude me certificar que, de fato, era um genuíno rabo de frevo-canção, fácil de identificar pelas bolinhas vermelhas em toda a sua extensão e os pelinhos loiros na ponta. Estimulado pela descoberta, dediquei-me ainda mais a procura-lo e, surpreendentemente, achei-o contorcendo-se em gargalhadas entre um abacaxi e um mamão. Não sei qual a graça disso mas os frevos-canções tem um humor bastante peculiar...
Tive que recorrer novamente a “Enciclopédia Ilustrada da Anatomia Musical” pois, afinal, não seria de bom tom envia-lo em dois pedaços, portanto tinha que colar o rabo ao corpo. Segundo o livro a melhor forma de juntar pedaços de frevo-canção é com um pouco de leite de vaca, bicho que tem um parentesco próximo com os frevos-canções e há até quem defenda que os bovinos são descendentes dos frevos de um modo geral.
Como não tinha leite de vaca, tentei leite de soja, sabor goiaba. Espero que tenha chegado bem e inteiro.

Beijo
h

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

carta #2

Caríssima Srta. L

Meu tio Bonifácio é um homem difícil, entregue as suas lembranças. Às vezes se perde em melancolia e permanece mudo enquanto seus olhos marejam de uma água que sobe lentamente, cobrindo as íris dos olhos como um dia a música fez com a cidade.


Foi há muito tempo, quando ele era apenas um garoto mas se lembra muito bem dos locutores de rádio histericamente avisando que os estúdios da Companhia Fonográfica Musical de Pernambuco tinham explodido por causa de um rufar de tambores mais intensos e de uma apitada aguda e forte, feita com gosto a pleno pulmões. As paredes do depósito não agüentaram e cederam espalhando uma enorme massa de sons que avançavam perigosamente sobre a cidade. No corre-corre do centro as pessoas gritavam umas para as outras que a gravadora tinha estourado e a Avenida Caxangá estava cheia de música, enquanto alguém com um rádio colado no ouvido já completava que lá pela Avenida Norte não se podia andar pois havia música até a canela.


Em pânico, as pessoas corriam tentando salvar seus pertences da fúria daqueles sons desordenados, soltos, livres, misturados ao ar, entrando nos ouvidos das pessoas, mostrando o quanto a natureza pode ser poderosa. Alguns enlouqueciam e dançavam do jeito que queriam, frenéticos e ridículos, completamente dominados por compassos desconexos e notas atonais.


Meu tio tentava pegar um ônibus na Conde da Boa Vista quando a música invadiu a rua, impedindo o fluxo dos bondes, desnorteando os pedestres, atrapalhando flertes e negócios. Pedaços de “ohs”, “uhs” e “ahs” misturavam-se a dós, rés, mis, fás, sols, las e sis provenientes dos mais diversos instrumentos com suas diferentes sonoridades, de trompetes a violões e flautas. Alguém jurou até ter ouvido um acorde de oboé...


Todos aqueles sons penetraram como vermes pelos ouvidos do meu tio, fazendo-o rir e chorar, dançar e, repentinamente parar, completamente estático, hipnotizado por um solo incompleto.


O Recife era um caos e quando, finalmente, os sons foram tragados pelos esgotos e jogados no rio, havia vestígios de música por toda parte e os carros não mais emitiam sons de carro mas de violoncelo e os bondes que antes tinha aquele som discreto de metal contra metal passaram a soar como violas e até mesmo objetos prosaicos como mesas e cadeiras emitiam constrangedores acordes de tuba quando alguém neles se sentava ou simplesmente se apoiava.


Em sua ingênua meninice, meu tio estava fascinado por aquela experiência que nunca mais pode viver a não ser em sonhos. E cada despertar tirava-lhe a graça da vida.


Alguns moradores guardaram em pequenos sacos plásticos um pouco do que restou desse dia e a prova disso está no Restaurante Paraxaxá, em Casa Forte. Saquinhos pendurados com sobras daqueles dias estão cheios de música e não se espante se um dia um deles estourar e você ouvir um clarinete gemendo.