segunda-feira, 10 de agosto de 2009

carta #2

Caríssima Srta. L

Meu tio Bonifácio é um homem difícil, entregue as suas lembranças. Às vezes se perde em melancolia e permanece mudo enquanto seus olhos marejam de uma água que sobe lentamente, cobrindo as íris dos olhos como um dia a música fez com a cidade.


Foi há muito tempo, quando ele era apenas um garoto mas se lembra muito bem dos locutores de rádio histericamente avisando que os estúdios da Companhia Fonográfica Musical de Pernambuco tinham explodido por causa de um rufar de tambores mais intensos e de uma apitada aguda e forte, feita com gosto a pleno pulmões. As paredes do depósito não agüentaram e cederam espalhando uma enorme massa de sons que avançavam perigosamente sobre a cidade. No corre-corre do centro as pessoas gritavam umas para as outras que a gravadora tinha estourado e a Avenida Caxangá estava cheia de música, enquanto alguém com um rádio colado no ouvido já completava que lá pela Avenida Norte não se podia andar pois havia música até a canela.


Em pânico, as pessoas corriam tentando salvar seus pertences da fúria daqueles sons desordenados, soltos, livres, misturados ao ar, entrando nos ouvidos das pessoas, mostrando o quanto a natureza pode ser poderosa. Alguns enlouqueciam e dançavam do jeito que queriam, frenéticos e ridículos, completamente dominados por compassos desconexos e notas atonais.


Meu tio tentava pegar um ônibus na Conde da Boa Vista quando a música invadiu a rua, impedindo o fluxo dos bondes, desnorteando os pedestres, atrapalhando flertes e negócios. Pedaços de “ohs”, “uhs” e “ahs” misturavam-se a dós, rés, mis, fás, sols, las e sis provenientes dos mais diversos instrumentos com suas diferentes sonoridades, de trompetes a violões e flautas. Alguém jurou até ter ouvido um acorde de oboé...


Todos aqueles sons penetraram como vermes pelos ouvidos do meu tio, fazendo-o rir e chorar, dançar e, repentinamente parar, completamente estático, hipnotizado por um solo incompleto.


O Recife era um caos e quando, finalmente, os sons foram tragados pelos esgotos e jogados no rio, havia vestígios de música por toda parte e os carros não mais emitiam sons de carro mas de violoncelo e os bondes que antes tinha aquele som discreto de metal contra metal passaram a soar como violas e até mesmo objetos prosaicos como mesas e cadeiras emitiam constrangedores acordes de tuba quando alguém neles se sentava ou simplesmente se apoiava.


Em sua ingênua meninice, meu tio estava fascinado por aquela experiência que nunca mais pode viver a não ser em sonhos. E cada despertar tirava-lhe a graça da vida.


Alguns moradores guardaram em pequenos sacos plásticos um pouco do que restou desse dia e a prova disso está no Restaurante Paraxaxá, em Casa Forte. Saquinhos pendurados com sobras daqueles dias estão cheios de música e não se espante se um dia um deles estourar e você ouvir um clarinete gemendo.

2 comentários:

  1. caro,

    lendo seu blog novo aqui em sydney na austrália - volto a ny semana que vem e vamos nos vêr. sucesso! b

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  2. estimadissimo H.
    gostei muito desta carta....
    minha curiosidade, há de me levar no rumo do Parraxaxá,e, uma vez lá, 'verme-ei' obrigada a apertar alguns daqueles saquinhos, em busca desse delicado clarinete...
    atenciosamente,
    L.

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